quinta-feira, 16 de julho de 2009

Carta de um animal arrependido - Parte I

Este é o início da trama que norteia a primeira temporada. Ainda estou escrevendo o resto, calma! Daqui a pouco eu saio da ambientação e entro na descrição dos personagens...

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Carta de um animal arrependido


Jogar é um vício. A própria vida é um jogo. Viver é um vício?


Não sei se esta carta vai ser lida por alguém algum dia. Se você acaba de ler, então com certeza eu estou morto. A pergunta é: quem está lendo? Se for alguém do Martelo de Deus, então minha morte deve ter sido lenta e cruel. Se não for, tudo bem. Tome cuidado com o que vai ler, porque aquilo que tenho para te contar é estarrecedor e perigoso. Basta alguém saber que você teve contato comigo e sua vida já corre perigo. Não precisa nem saber o que sei, basta pegar neste papel para se tornar um alvo deles. É uma margem de segurança, sabe: eles nunca correrem riscos, por menores que sejam. E também não cometem erros. Possuem informação, influência, alta tecnologia, muito dinheiro... E nenhuma piedade.


Quando era menino, imaginava um mundo colorido e harmonioso, repleto de guloseimas gostosas e sonhos realizáveis. Não era por menos: meu pai era o quinto homem mais rico do mundo! Você deve estar imaginando o que eu tinha, e provavelmente não chegou nem na metade. Os cifrões abrem todas as portas, derrubam todas as ideologias e removem todos os empecilhos. Não importa o que digam, todos têm o seu preço. Bem, na verdade isso é uma simplificação grosseira. Nem todos são comprados por dinheiro, claro. Mas todos possuem o seu ponto fraco. Para alguns é poder, outros mulher, influência, status, ego, medo. A verdade é que se eu não posso te comprar, compro alguém que arranca de você o que quero.


Meu pai não me negava nada, exceto a si mesmo. Este mundo em que vivo é cercado por assombrações e catacumbas. São pessoas mortas e escravizadas, que se entendem livres quando matam e escravizam os outros. Talvez isso explique o fracasso da nossa sociedade. As pessoas que estão no poder, estas cuja função seria a de te dar conforto e bem estar, não o possuem em si mesmas. É muito fácil lidar com a carne, e é apenas isto o que o dinheiro consegue comprar. Difícil mesmo é acalmar o espírito.


Para meu pai, tudo o que construía, tudo o que fazia, tudo aquilo por algum motivo deveria me agradar. Afinal, era para mim que isto tudo iria servir no futuro, quando ele morresse. Mas eu só queria que ele me amasse, e demonstrasse isso de alguma forma mais... humana! Bens, conforto, poder? Nada disto pode seduzir o coração de uma criança. Elas são simples demais para lidar com estas coisas. O mundo delas é imaginário, idealizado. São apenas sonhos, brincadeiras e sorrisos. Não precisa ter muito, basta não ter fome nem frio e sentir-se seguro.


Quero pedir perdão a humanidade. Sei o que fiz, e fiz coisas estarrecedoras. Quando cresci, não sei porque, fui pouco a pouco sendo seduzido por meu pai e me tornando como ele. Por mais que estivéssemos distantes, sua frieza de alguma forma me alcançou. Comecei a perseguir os mesmos objetivos, a apregoar as mesmas idéias. O menino puro e inocente evoluía.


Isso mesmo: evoluía! Seria o salto da pureza para o abismo uma evolução? É claro que sim! Ora, não se assuste por eu ter usado esta palavra, pois é justamente isso o que nós, homens de boa fé, sabemos fazer de melhor: subverter. Modificamos o mundo e o fazemos nossa imagem e semelhança. Então não se assuste se modificarmos a linguagem para descrever o que queremos. E não falo como membro da Aliança, porque não nos preocupamos com coisas pequenas. São as pessoas de coração puro, como você e seus amigos, quem sustentam as ideologias dos poderosos. Vocês querem ser como nós, e nos aproveitamos disso sem o menor escrúpulo. É mais fácil alcançar o que queremos quando as convenções morais e os prejudicados concordam com o nosso trabalho. Mais ainda quando querem fazer parte dele. Esse é o centro de todos os processos de dominação.


É uma armadilha. Uma bolha, num mundo idealizado e irreal, onde você é o centro de tudo, todos estão aos seus pés e nada pode te faltar. Não dá para saber exatamente quando aquilo te seduz, menos ainda quando você cede. Apenas um dia, um belíssimo dia ensolarado e bonito, você acorda e aceita aquele vazio, aquela monotonia e suas crises existenciais como se fossem parte de sua existência, e não o resultado de seu estilo de vida.


Talvez a característica mais evidente deste processo todo seja a prepotência. Veja bem, eu poderia ter escrito “defeito” ou “qualidade” no lugar de “característica”. É tudo um mero ponto de vista, que no meu caso não tem a menor importância. É novamente aquela coisa de subverter as palavras, de usar o vocabulário adequado contra aquele que você quer convencer. É um jogo de idéias. No entanto, pense bem nesta palavra. Ela é o centro de tudo!


As pessoas no meu mundo são incrivelmente individualistas. É muito óbvio, quando se imagina um garoto que nunca foi contrariado na vida. Eu não tinha como desenvolver a tolerância em um meio social onde as pessoas nunca entravam em conflito comigo. Isso é regra para todas as crianças com um poder aquisitivo similar ao meu. Um adulto que enxerga o mundo como objeto de sua própria diversão é resultado natural do processo. Eu sinto muito! Infelizmente, são estas as pessoas que decidem o futuro da humanidade.


Quando meu pai morreu eu assumi os negócios. Não quero entrar neste detalhes, são enfadonhos demais. Quando tudo aconteceu eu comecei a perguntar para que servia tanto dinheiro, se eu não tinha condições de gastar nem mesmo uma pequena fração de seu valor. Se eu limpasse o rabo com uma nota de cem dólares, a cada minuto, durante todos os minutos do dia, sem parar para descansar nem dormir, durante 400 anos não conseguiria gastar minha fortuna, e os trocados que sobrassem davam para financiar a economia de um pequeno país. Não me pergunte por que cargas d'água eu me dedicava tanto para mante-la, nem porque tantas vidas se perderam para sustenta-la.


Tanta gente passa fome e eu sozinho tenho dinheiro para resolver o problema da maioria delas. Mas a maior injustiça é que a fome delas paga meu salário. Ora, calma! Não me chingue ainda. Esse mundo é irracional, eu só posso te dizer isso. Sou cria dele, e você também é. Somos a mesma coisa em contextos diferentes.


Muitos de vocês, a esmagadora maioria para dizer a verdade, fariam mais do que fiz para estar onde estou. Então não venha com esta hipocrisia de valores morais e éticos, esta coisa de humanidade. É tudo um jogo, e só ganha quem não se importar com o que os outros estão a perder. Eu sou só um ser humano como todos os outros, e sou minoria. Se a humanidade não concordasse com aquilo que faço, não estaria onde estou. E concordam porque querem jogar, querem ganhar meu lugar. É como se eu fosse uma espécie de desafio. Ganhei, e se perdesse estaria aí com você, então ninguém pode me acusar de ser injusto ao fazer com os outros o que eles gostariam de fazer comigo. É assim: você entra no jogo e tem que aceitar todas as cartas que vier no baralho.

Mas não é pra falar mal da humanidade que estou escrevendo. Vocês não são perigosos. Sua sociedade cruel e demente foi direcionada nós, mas construída e sustentada por vocês. É tudo uma farça, uma orquestração para mante-los sob nosso controle. Vocês concordam com isto, desde que tenham a chance de também controlar. É uma pena que a palavra "chance" não queira dizer "oportunidade". Enquanto houver ganância, a irracionalidade coletiva vai manter os poderosos onde estão. Para quem está no topo não existem ameaças.

Não me arrependeria de ser parte de SUA sociedade, muito menos de estar entre os mais bem sucedidos. Não, não é isso o que me atormenta. O que tenho pra dizer é coisa muito pior... É algo que está além daquilo que você considera seguro. Penso apenas no que fiz. Queria imaginar que aquele dia nunca tivesse existido, que eu simplesmente tivesse desligado o telefone. Tudo agora estaria como sempre foi. Mas os métodos de persuação deles são fortes. E eu não resisti!

(Continua...)

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