sábado, 18 de julho de 2009

Carta de um animal arrependido - Parte II

(...Continuação)

Carta de um animal arrependido - Parte II


"Quando no alto o céu não era ainda nomeado, nem em baixo a terra tinha nome, Apsu, o primordial, de quem nascerão os deuses,e Tiamat, a genitriz, que os parirá todos, misturaram em um só todas as suas águas, mas não tinham formado as pastagens, nem descobertos os canaviais, quando nenhum dos deuses ainda aparecera, nem era dotado de nome nem provido de destino, então, de seu seio, os deuses foram criados." -- Enuma elish, tablete 1

Neste mundo, este aqui onde vivemos, as amarras sociais existem antes de você se entender como gente. Na verdade, já estavam aqui quando sua mãe e seu pai copulavam e provavelmente muitas gerações antes deles. Tudo já estava decidido, manipulado. Tudo fora designado e arrumado para que as coisas acontecessem como são agora. Todas as mentiras já haviam sido inventadas e contadas milhares de vezes.

Não acredite no que dizem os livros de filosofia. Esqueça as idéias políticas e as análises sociais. São apenas passa-tempo intelectual, para pessoas que se julgam importantes pela inteligência que acreditam possuir. Explicar um mundo complexo a partir de sua própria complexidade é um erro, um abismo sem fundo ladeado por paredes ilusórias e conceitos irreais. Os galhos não conseguem descrever os detalhes do tronco, apesar de nascerem dele. Existem poucas equações capazes de reger o mundo, mas nem sempre os resultados te permitem deduzir a equação primeira.

Desde que sua mãe te pariu, quando você chorou pela primeira vez, lá no início de sua vida, que te enfiam na cabeça nossa fórmula principal: Crescer, crescer, crescer, crescer e crescer. Estagnar é morrer. Expandir-se sempre, rumo ao infinito, é o verdadeiro sentido de nossa existência. A mola mestra desta civilização é a busca irracional pela superação de tudo, sempre. Ser o melhor, ter mais saúde, mais conhecimento, mais diversão, mais prazer, mais mulheres, mais dinheiro... Durante todos os seus dias, o ser humano é treinado e enganado para ir além do que é ou do que possui, a nunca estar satisfeito com nada.

A vida naturalmente impõe suas metas, é óbvio. O que teria acontecido se outro espermatozóide, que não o seu, tivesse fecundado o óvulo de sua mãe? Você com certeza não estaria hoje lendo esta carta. Ameaças se apresentam a cada minuto, ininterruptamente, desde o nascimento da matéria até o dia em que o corpo é vencido ou se entrega. Temos que lutar contra elas, é claro. Oh, mas espere! Nossa sociedade sabe muito bem disto, há séculos. Superamos a natureza, nos impusemos diante dela, a subjugamos em favor de nossa própria vontade. A maior parte destas ameaças hoje é coisa do passado. Somos o animal mais bem adaptado da face da terra, o topo da cadeia alimentar que a todos devora, mas nunca é devorado.

Ainda assim, a eterna busca pela superação continua, como se nada ou ninguém a pudesse parar. Vivemos sempre atrás de novos objetivos, e sofremos quando não possuímos nenhum, como se alguma coisa nos faltasse. É como se o sentido da vida estivesse eternamente para além de si mesma. É um eterno “vir a ser”, subjugando o “ser” que já “é”. Não importa o que digam, este é o alicerce sobre o qual a Aliança nasceu, e talvez por isto ela tenha se tornado tão irresistível para mim.

O que eu quero te dizer é muito simples, meu caro. Para ser curto e grosso, há poucas complexidades no mundo. Esse discurso trivial que te ensinaram, esta linda e maravilhosa falácia de conquista e superioridade, tenta esconder dentro de suas inúmeras frases feitas uma dedução, que de outra forma seria óbvia: tudo tem um limite. Novas metas, grandiosos objetivos ou maiores desafios, oh, que ingênuo! Algum dia a curva linear do crescimento se estagna e pára, depois começa a cair. Então você apenas olha para os lados, procurando um novo rumo, e descobre que não tem mais para onde ir.

Deve ser estranho pra você o que estou escrevendo. Nosso mundo tem enormes oportunidades, a maioria delas inalcançáveis para as pessoas comuns. É uma pena que o brilho nos olhos destes célebres descendentes de macacos venha de tão pouco: não conseguem alcançar o que querem, mas a sua ânsia de busca-las alimenta seus sonhos. Então passam a viver num mundo imaginário onde tudo é possível. O desejo de um futuro próspero gerando forças para enfrentar a dura realidade. Uma tenra felicidade que dura apenas até acordarem, e descobrirem que era tudo ilusão.

Mas lembre-se que estou entre os homens mais ricos do mundo. Tudo o que sua sociedade pode construir, conquistar ou fazer está ao alcance da minha conta bancária. O que poderia desejar que já não tenha conseguido? Suas metas de vida, seus sonhos, seus desafios, qualquer coisa que pra você seja impossível, para mim pode ser conseguido com apenas um ou dois telefonemas. Há pouca coisa por fazer. Da mesma forma que você, eu também vivo nesta sociedade, também fui ensinado a querer mais e mais. No entanto, depois de ter conseguido tudo, esta ânsia por conquista ainda me persegue sem ter nada mais para me dar. Cheguei onde todos os outros seres humanos gastariam de estar, e o prêmio que recebi foi uma quantidade crescente de tédio.

Foi por isso que naquele dia eu não desliguei o telefone. Do outro lado uma voz feminina me dizia tudo o que sou e o que sinto. Ela me conhecia em detalhes, como se houvesse uma telepatia entre nós. Em um momento, me intimidou como se fosse chantagem. Usou o medo para me conduzir a um universo intermediário entre aquilo que afirmo ser e aquilo que realmente sou. Mostrou-me as paredes ilusórias que sustentavam meu castelo de cartas, fazendo-as então desaparecer como se fossem fantasmas.

No momento seguinte, eu estava caindo num abismo. Acredite, meu amigo, que quando você está em queda livre num buraco sem fundo, a última coisa que vai querer é descobrir que existe um fim para a queda. E no entanto existia, lá, bem distante e se aproximando assustadoramente, anunciando a dor que me esperava no choque. Só depois disto ela fez a proposta: uma oportunidade de viver emoções fortes, desafiadoras, conflitantes e inesperadas. O direito de pegar um Deus morto e, ao invés de ressuscita-lo, tomar seu lugar. Uma espécie de desafio que estava muito além do meu dinheiro. Uma semana depois eu me tornava Lord Escher, membro permanente e vitalício da Aliança Divina.

(Continua...)

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